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Transcrição integral da reportagem realizada pelo jornal "O PÚBLICO"

David Andrade (Perpignan, 18 de Fevereiro de 2017)

O primeiro jogo internacional da equipa feminina dos “leões” representou mais um passo na estratégia de afirmação da modalidade, dentro e fora de portas. Mas, antes de pensar em derrubar adversárias, é preciso continuar a abater preconceitos

À entrada no autocarro vai desfilando uma sucessão de mulheres com corpos atléticos, ainda descontraídas, que procuram os seus lugares na retaguarda do veículo. Trajam de forma idêntica: sweats verdes, calças de fato de treino pretas e sapatilhas. Estão quase todas na casa dos 20 anos e podiam estar numa qualquer esplanada de Lisboa a saborear gelados ou a beber cervejas com amigos. No entanto, estão em Perpignan, no Sul de França, numa cidade que respira râguebi por todos os poros. À medida que o autocarro vai percorrendo os poucos quilómetros que separam o centro da capital da Catalunha francesa do Estádio Roger Ramis, a agitação serena. Como se alguém fosse diminuindo o volume da festa. Deixa-se de ouvir Justin Bieber, Rihanna ou cânticos da Juve Leo, e o burburinho dá lugar ao silêncio. Está prestes a começar o primeiro jogo internacional da equipa de râguebi feminino do Sporting.

De um lado vai estar a Union Sportive Arlequins Perpignanais (USAP), o clube mais antigo de um país que tem quase meio milhão de jogadores federados e trata por tu o râguebi há mais de um século; do outro estará a equipa de uma modalidade que apenas este ano garantiu o estatuto de “oficial” no eclectismo do Sporting. E embora no râguebi a palavra “jogo” nunca faça par com “amigável”, já que todos os confrontos são disputados como se de uma final se tratasse, durante o aquecimento percebe-se com facilidade no rosto e na atitude corporal das jogadoras que umas reconhecem à partida um peso diferente do que lhe atribuem as outras. Tensas, de cara fechada e com uma pose mais guerreira, o comportamento das portuguesas contrasta com o das francesas, que se revelam relaxadas e não reprimem algumas gargalhadas. Essa diferença de postura explica-se pela realidade da modalidade nos dois países: enquanto as atletas da USAP têm competição regular no tradicional râguebi de 15 (XV), as sportinguistas apenas podem competir na variante de sete (sevens). Motivo? As atletas federadas em Portugal no escalão sénior são menos de 150 e, à excepção do Sporting, nenhum clube conseguiria preencher a lista de 23 jogadoras que compõe a ficha de jogo no XV feminino.

Esta conjuntura representa, aliás, um dos maiores obstáculos com que se depara Rafael Lucas Pereira, o principal mentor do projecto de râguebi do Sporting. Depois de promover em 2012, após 48 anos de interregno, o regresso dos “leões” à modalidade que originou o equipamento listado que os sportinguistas ainda hoje utilizam, esse responsável revolucionou a estratégia ao apostar todas as fichas na variante feminina. É verdade que, em apenas três anos, conseguira estabilizar a equipa masculina na primeira metade da tabela da segunda divisão; mas, para o líder do râguebi “leonino”, era preciso “mais ambição”, porque “qualquer equipa do Sporting deve lutar para ser campeã nacional”.

Apesar de Portugal ser um país onde “ainda há muito preconceito” e onde são várias “as dificuldades inerentes à competição no feminino”, Rafael Lucas Pereira garante que “são cada vez mais as mulheres a praticar desporto de alto nível”, pelo que o Sporting “não podia excluir-se dessa tendência”. Definidos os objectivos do clube para a secção feminina, houve que avançar para a concretização do projecto. Se fora do campo a máquina é oleada por Rafael Lucas Pereira, contando com a colaboração do coordenador desportivo João Tiago Silva, no relvado é Isabel Ozório que lidera de forma incontestada. Capitã da selecção nacional, a portuense que começou a jogar no CDUP aos 13 anos procura comandar “pelo exemplo”, seguindo as pisadas das suas principais referências: Marta Ferreira, antiga internacional portuguesa, e Richie McCaw, carismático capitão da Nova Zelândia entre 2006 e 2015.

“Cultura machista”

Habituada aos estereótipos retrógrados que no râguebi vêm persistindo, Isabel não hesita na hora de apontar o dedo a um desporto que ainda vive submerso numa “cultura machista”. “Os rapazes que jogam são os que acham menos piada a que as raparigas joguem também”, observa. “Talvez se sintam ameaçados”. Isso poderá ajudar a explicar por que é que em Portugal o râguebi feminino ainda “não é uma prioridade” e regista “um número de praticantes ridículo”, mas, em contrapartida, também reforça o reconhecimento da capitã para com a estratégia contracorrente dos “leões”. “No Sporting, somos tratadas de uma maneira que não acredito que se verifique em mais nenhum clube”, reconhece a internacional portuguesa, que nas “pep talks” exorta as colegas a retribuírem dentro de campo as boas condições que lhes são proporcionadas: “Não joguem por nós, joguem pelo clube.” Obstinada e competitiva, não esconde o desejo de subir o seu patamar de exigência e jogar na Nova Zelândia, mas, embora já se tenha deparado com a oportunidade de concretizar essa ambição nesta época, adiou o sonho para mais tarde, por ter assumido um compromisso prévio: “Tentar fazer do Sporting campeão”.

Se Isabel Ozório encarna na perfeição o papel do general que tenta conduzir as tropas para a vitória, Catarina Esaguy é o ombro que todas procuram nos momentos menos bons. Num grupo de 29 jogadoras cuja média de idades pouco ultrapassa a fasquia dos 20 anos, esta antiga jogadora do CR Técnico distingue-se por ser a mais velha (tem 31 anos) e por conciliar o râguebi não apenas com uma vida profissional, mas também com a maternidade. Reconhece que é “preciso muita logística” para corresponder a todas as responsabilidades e assume como fundamental a ajuda dos pais, mas, embora venha prometendo há três anos que deixará de jogar no final da época, a mudança para os “leões” colocou a sua “reforma desportiva” em stand-by. “Com o Sporting, mudou tudo. Agora isto é levado muito a sério e há rigor. Se o clube não tivesse surgido na minha vida, já tinha abandonado o râguebi”, confessa.

No início, Catarina Esaguy ainda procurava justificar às amigas que não pertencem ao “mundo oval” os motivos que a levam a fazer tantos sacrifícios para continuar a competir; agora, contudo, já não perde tempo a explicar que o râguebi “é um escape” e que hora e meia de treino funcionam como “uma terapia”. Jogar é fazer “pause” nas suas outras responsabilidades quotidianas e só quando sai do balneário é que a atleta volta à sua azáfama pessoal, correndo “para ir deitar o Tyler”, o filho de quatro anos. Catarina prometeu a si mesma que não ia “levar o râguebi como uma preocupação”, mas assume o seu papel de mãe e de “veterana”, até para que as colegas sigam o seu exemplo: “Se eu consigo, elas também têm que conseguir”.

“Elas têm mais empenho”

Antigo internacional português, Nuno Mourão exerce o cargo de treinador da equipa feminina de râguebi do Sporting com a consciência de que as suas jogadoras enfrentam dificuldades muito maiores do que aquelas com que ele próprio se deparou enquanto atleta. Diz que a culpa é da “falta de cultura desportiva” num país onde “os grandes campeões nas modalidades são formados por acaso” e defende que todos os preconceitos caem por terra quando se constata que, “logo no primeiro contacto com o râguebi, as miúdas procuram mais o confronto físico do que os rapazes”. “Elas têm mais espírito de compromisso e empenho”, acrescenta. Além disso, a integração de novas atletas numa equipa já formada é mais fácil entre as mulheres do que entre os homens: “Se for preciso, elas até se prejudicam só para poderem ajudar as mais novas”, explica o antigo jogador do RC Técnico e de Agronomia. “Já numa equipa de homens, os que chegam têm que se safar sozinhos”.

Essa integração e esse espírito de equipa ficaram bem visíveis em Perpignan. Depois de muitos obstáculos ultrapassados, os principais relacionados com procedimentos necessários para que as universidades libertassem as jogadoras estudantes para a viagem, Rafael Lucas Pereira considera que a deslocação a França teve, por um lado, “um espírito diplomata, no sentido de que foi ao encontro da comunidade portuguesa”, e, por outro, permitiu testar a sua equipa a “um outro nível”, antevendo competições femininas europeias. Afinal, quando essas se proporcionarem, “o Sporting tem que estar preparado e na linha da frente”.

Enquanto isso não acontece, o dirigente mantém a ambição “de realizar um jogo de râguebi internacional em Alvalade, seja com a selecção nacional ou com a equipa sénior do Sporting”, e propõe-se também encaminhar dos escalões de formação para as selecções nacionais “o maior número possível de jogadores”, sem negligenciar a “exportação” de atletas para as “melhores academias europeias”. Por resolver fica a inexistente competição interna no râguebi de 15, o que leva Rafael Lucas Pereira a não descartar a possibilidade de, em concordância com a Federação Portuguesa de Rugby, “estudar uma eventual candidatura à participação no campeonato espanhol”.

Se isso se concretizar, terão as sportinguistas o potencial necessário para se baterem de igual para igual com as espanholas, que participaram no último Campeonato do Mundo? Depois da vitória no estádio Roger Ramis frente à reputada USAP, por 17-10, ficaram poucas dúvidas de que sim.

(O PÚBLICO viajou a convite do Sporting)


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